Desgaste dental erosivo: quando o fisiológico se torna patológico?
Autores debatem o desgaste dental erosivo dos dentes.

Desgaste dental erosivo: quando o fisiológico se torna patológico?

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O desgaste dental erosivo não deve ser considerado patológico em todos os casos, uma vez que faz parte do envelhecimento natural dos dentes.

O desgaste erosivo é caracterizado pela perda da estrutura dental em contato com ácidos de origem não microbiana, que pode ocorrer de forma isolada ou sinérgica com fatores mecânicos, como abrasão e atrição¹. Sua natureza multifatorial reflete a alta complexidade relacionada ao diagnóstico e ao controle dos fatores causais e pode explicar por que alguns indivíduos apresentam graus de desgaste mais elevados do que outros, mesmo quando submetidos aos mesmos desafios erosivos/abrasivos.

Mudanças nos padrões alimentares e no estilo de vida observadas nas últimas décadas são as maiores responsáveis pelo aumento na ocorrência de desgaste erosivo, especialmente na população mais jovem2. Embora esteja listado na Classificação Internacional de Doenças (CID), o desgaste não deve ser considerado patológico em todos os casos, uma vez que faz parte do envelhecimento natural dos dentes. Sendo assim, é muito importante que o cirurgião-dentista saiba determinar quando o fisiológico se torna patológico. Para tal, a idade é um fator determinante, além disso deve-se considerar patológico um desgaste tão severo que compromete a função, a estética e causa dor3.

A interação entre os fatores listados no interior do círculo (Figura 1) irá determinar a severidade do desgaste, enquanto os fatores da porção externa do círculo estão relacionados com a prevenção e o desenvolvimento das lesões4. Sendo assim, o cirurgião-dentista deve realizar uma criteriosa anamnese, abordando a história médica e odontológica, bem como a exposição aos fatores de risco. É importante investigar hábitos alimentares, tais como frequência e padrão de consumo de alimentos e bebidas ácidas (quantidade, tipo do ácido, uso de canudos, manutenção da bebida na boca ou bochecho), e ainda o consumo de medicamentos ácidos ou que afetam o fluxo salivar5. Deve-se pesquisar também sobre a doença do refluxo gastroesofágico (DRGE), vômitos frequentes e exposição a ácidos durante atividades ocupacionais6 e esportivas7. Ainda, a frequência e o padrão de escovação dental, incluindo abrasividade do dentifrício e força utilizada durante a escovação, devem ser explorados8.

A análise do fluxo salivar e da capacidade tampão da saliva é de grande importância para o correto diagnóstico. Dada a natureza multifatorial do desgaste, é preconizada a investigação de bruxismo, apertamento dental e demais hábitos parafuncionais, como interposição do lábio, língua e objetos entre os dentes. Além do controle dos fatores causais, estratégias que visam aumentar a resistência dos tecidos dentais à desmineralização são coadjuvantes para minimizar a progressão de lesões existentes, como o uso de produtos à base de fluoretos. Fluoretos monovalentes, como o fluoreto de sódio ou de amina, usualmente encontrados em dentifrícios e enxaguatórios, têm mostrado eficácia limitada na prevenção do desgaste erosivo. Já os compostos polivalentes metálicos, como os derivados do estanho (SnF2 ou SnCl2), têm mostrado efetividade superior9, mas sua presença no mercado brasileiro ainda é tímida.

O início do processo erosivo ocorre através da dissolução do esmalte, resultando no amolecimento da superfície. A observação clínica nos estágios iniciais é bastante difícil, no entanto, com um criterioso exame, pode-se observar uma superfície lisa e de aparência acetinada, com perda das periquimácias e da textura superficial (Figura 2).

Quando existe a persistência dos desafios erosivos, aliados à abrasão ou atrição, o processo evolui para perda dental mais severa, havendo exposição de dentina10. Em superfícies lisas, áreas convexas se tornam aplainadas ou côncavas, com largura claramente maior do que a profundidade. Observa-se a manutenção de uma área de esmalte inalterado ao longo da margem gengival dos dentes, resultado do efeito protetor do fluido crevicular. Em superfícies oclusais, as pontas das cúspides tornam-se arredondadas ou em formato de cálice11 (Figuras 3).

A exposição da dentina pode levar à sensibilidade frente a estímulos térmicos e/ou táteis, além de perda de função e/ou estética dos elementos dentais. Nestes casos, a decisão a respeito da necessidade de adotar um procedimento restaurador pode ser direcionada com base em ferramentas de diagnóstico, como o índice Bewe (do inglês Basic Erosive Wear Examination)11-12, que é um sistema de pontuação simples que quantifica o tamanho da lesão em relação à área da superfície afetada. Assim, de acordo com a pontuação obtida, são feitas recomendações a respeito da conduta clínica para o caso.

A opção por um tratamento reabilitador deve considerar não apenas a severidade do desgaste aliado à idade do paciente, mas também a presença de sensibilidade, dificuldades de mastigação e estética, considerando sempre o grau de descontentamento do paciente3. Uma vez determinada a necessidade de procedimentos restauradores, deve-se atentar para o fato de que, por serem geralmente cavidades rasas e planas, a retenção das restaurações será determinada principalmente pela técnica adesiva empregada10. É importante ressaltar que as restaurações diretas ou indiretas não impedem a progressão do desgaste, apenas podem modificar a taxa de progressão e localização do processo³. Assim, mais do que realizar belas restaurações nos dentes erodidos, cabe aos profissionais conscientes identificar os fatores etiológicos e moduladores para minimizá-las ou, preferencialmente, torná-las desnecessárias.

Referências

  1. Carvalho TS, Colon P, Ganss C, Huysmans MC, Lussi A, Schlueter N et al. Consensus report of the European Federation of Conservative Dentistry: erosive tooth wear – diagnosis and management. Clin Oral Investig 2015;19(7):1557-61.
  2. Salas MMS, Nascimento GG, Huysmans MC, Demarco FF. Estimated prevalence of erosive tooth wear in permanent teeth of children and adolescents: an epidemiological systematic review and meta-regression analysis. J Dent 2015;43(1):42-50.
  3. Loomans B, Opdam N, Attin T, Bartlett D, Edelhoff D, Frankenberger R et al. Severe tooth wear: European Consensus Statement on Management Guidelines. J Adhes Dent 2017;19(2):111-9.
  4. Lussi A, Carvalho TS. Erosive tooth wear: a multifactorial condition of growing concern and increasing knowledge. Monogr Oral Sci [On-line]. Disponível em <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24993253>.
  5. Zanatta RF, Avila DMS, Torres CRG, Borges AB. Fatores moduladores do desgaste dental erosivo. Rev Assoc Paul Cir Dent 2017;71(2):190-6.
  6. Wiegand A, Attin T. Occupational dental erosion from exposure to acids: a review. Occup Med 2007;57(3):169-76.
  7. Soares PV, Tolentino AB, Coto NP. Corrosão dentária em atletas: fatores de risco associados ao estilo de vida: revisão crítica. Rev da Assoc Paul Cir Dent 2019;73(2):144-8.
  8. Wiegand A, Schlueter N. The role of oral hygiene: does toothbrushing harm? Monogr Oral Sci. 2014;25:215-9 (DOI:10.1159/000360379).
  9. Lussi A, Carvalho TS. The future of fluorides and other protective agents in erosion prevention. Caries Res 2015;49(suppl.1):18-29 (DOI:10.1159/000380886).
  10. Peutzfeldt A, Jaeggi T, Lussi A. Restorative therapy of erosive lesions. Monogr Oral Sci 2014;25:253-61 (DOI:10.1159/000360562).
  11. Ganss C, Lussi A. Diagnosis of erosive tooth wear. Monogr Oral Sci Monogr Oral Sci 2006;20:32-43 (DOI:10.1159/000093349).
  12. Zanatta RF, Duarte D, Feres M. Lesões não cariosas e HMI: o que precisamos saber! (vol. 1). Nova Odessa: Napoleão, 2019. p.112.